Cultura, Ciência e Cultura Científica: confusões em torno de três conceitos

18-05-2009 11:48

Um intelectual português bem conhecido e, em tempos, quase canonizado pelo escol cultural nacional, Eduardo Lourenço, indica que a partir do momento historicamente trágico da instituição do Santo Ofício em Portugal o nosso país ficou condenado a um estrutural atraso cultural e científico. Atraso comprometedor para este extremo ocidental europeu.

Independentemente do alcance – mais ou menos rigoroso – desta asserção ela assume um mérito: não dissocia cultura e ciência. Aliás, talvez tenha sido justamente o nosso lastro inquisitorial o primeiro passo para que actualmente não se consiga vislumbrar, na sociedade portuguesa, uma noção de cultura que ultrapasse o reduto da contemplação estética e da erudição humanística. A ciência é, geralmente, perspectivada como uma técnica, institucional e respeitável, aferrada à obrigatoriedade de se actualizar em tecnologia (que para a mesma perspectiva popular e colectiva é sinónimo de utilidade).

Porém, se entendermos a cultura num sentido menos institucional e mais conceptual obtemos a noção de que a cultura é o conjunto de todas as operações que a Natureza não realiza por si mesma e que o Homem lhe acrescenta. A partir daqui a ciência surge como a mais profícua e vigorosa força cultural de que a humanidade dispõe e a que mais estusiasticamente desenvolve. Além disso, surge ainda como a principal justificação da clara superioridade do Ocidente democrático sobre o resto do mundo em termos de bem-estar social e desenvolvimento humano integral. As grandes conquistas culturais do Ocidente nos últimos 200 anos não foram a Mensagem de Pessoa, o Pensador de Rodin ou o Pássaro de Fogo de Stravisnky. Pelo menos não o foram na mesma medida que o aumento da esperança média de vida, da implementação de mecanismos de protecção social às crianças e aos idosos, da emancipação feminina potenciada pela descoberta da pílula, do combate à doença ou da globalização das comunicações. E é na consciência colectiva da inevitável imbricação destes grandes movimentos civilizacionais com o desenvolvimento científico que se revela a cultura científica de um povo. Logo, não se confunde erudição científica (conhecimento das linhas gerais e evolutivas das ciências indutivo-experimentais e lógico-dedutivas) com cultura científica. A última é uma maneira de pensar, uma visão do mundo, da vida, da sociedade e do Homem. Ou seja, é uma ideologia de progresso humano (biológico, moral e social). Em Portugal há cientistas (eruditos). Por poucos que sejam, existem (como na Nigéria ou no Sri Lanka). Mas não há cultura científica, pela razão simples de que esta não depende de uma investigação ocupacional de elites especializadas mas da disseminação coerente e universal, pela consciência nacional, dessa mundividência que é o método empírico-crítico (problematizar-traçar cenários explicativos plausíveis-verificar). Um método para todos os grandes problemas humanos colectivos e até individuais.

Os portugueses não dispõem deste instrumento para enfrentar o seu destino enquanto povo e enquanto indivíduos. Embrutecidos pelo sistema mediático, macerados pela “crise” e ancestralmente formados por uma cultura de sentimentalismo errático e irracionalismo festivo, chegam ao século XXI com o esplendor da sua identidade nacional duplamente vincada pela resignação cínica e pelo oportunismo saloio. Impreparados por este estigma o mundo despreza-os, normalmente sob a forma de indicadores internacionais em matéria de educação e desenvolvimento económico.

Há volta a dar? O próximo artigo de quem escreveu este não responderá a esta questão, mas irá problematizar uma solução, senão possível pelo menos plausível.

Mário Rui Dias, Professor de Filosofia

 

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